Abram mão do poder:
Atenção, CEOs, esta é a regra número 1 para quem quer liderar processos de mudança bem-sucedidos
(coautoria com Peter Senge, originalmente publicado na Revista Exame em 06/08/2003)
CEOs enfrentam um dilema comum. Muitos conselhos de administração e acionistas quando deparam com realidades empresariais profundamente diferentes – demandas sem precedentes geradas pela competição global, novas tecnologias, mercados emergentes, fusões e alianças, bem como a crescente pressão ambiental – buscam o CEO-herói: aquela pessoa (leia-se “homem”) capaz de satisfazer os acionistas, energizar os funcionários que resistem à mudança e tomar “decisões difíceis”.
Mas muitos CEOs também sabem, a partir de sua própria experiência, que precisam (e algumas vezes são até cobrados pelo próprio conselho de administração por isso) distribuir autoridade e responsabilidade pelo negócio mais amplamente, tornando a empresa apta para identificar e responder aos desafios de mercados cada vez mais dinâmicos.
Daí surge o dilema: a demanda por mudanças rápidas leva empresas a buscarem uma liderança mais agressiva, de cima-para-baixo, mas a realidade das dinâmicas empresariais recomenda que a liderança seja exercida em muitos níveis. Não é possível criar organizações menos hierarquizadas somente por meio de melhores líderes hierárquicos. Os CEOs logo percebem que, na verdade, o mito do líder-herói cria um círculo vicioso, no qual as mudanças dramáticas impostas pelo topo levam ao aumento do medo e à diminuição da capacidade de liderança dentro da organização. No momento seguinte, esse processo abre caminho para novas crises, que acabam demandando mais liderança heróica.
Os CEOs sabem que as organizações de sucesso necessitam do comprometimento genuíno de todos os seus membros, e que, quando esse comprometimento é necessário, a liderança hierárquica, autoritária e agressiva torna-se problemática. O comando de-cima-para-baixo reforça um ambiente de medo, desconfiança e competição interna que reduz a colaboração e a cooperação. Essa verticalização gera envolvimento em vez de comprometimento. E apenas o comprometimento genuíno gera coragem, imaginação, paciência e perseverança – elementos necessários ao sucesso.
Mudar as Pessoas
O jeito de funcionar das organizações é determinado pela maneira de trabalhar de seu sintegrantes. Isso significa que os tipos de mudança que a maioria delas precisa estão tanto no nível “externo” quanto “interno”. Eles envolvem alterações nos sistemas, nos processos e nas práticas que definem como a organização funciona, mas também envolvem mudanças em crenças, pressupostos e hábitos que são sociais e, em última instância, pessoais.
De uma maneira geral, reorganizações, downsizings, programas corporativos de redução de custos ou reengenharias podem ser implementados a partir do topo. Mas, se você quer alterações organizacionais profundas, é preciso que haja mudança dentro das pessoas. Redesenhar as linhas e as “caixinhas” do organograma sem lidar com a forma com a qual as pessoas interagem na organização pode ter tanta eficácia quanto re-arranjar as cadeiras do deck do Titanic.
Tais mudanças não são capazes de transformar culturas corporativas baseadas em medo e reações defensivas. Elas não liberam a imaginação e a paixão nem modificam a qualidade do pensamento da organização e a habilidade de as pessoas melhor compreender as complexidades da realidade empresarial. Elas não aumentam a inteligência da linha de frente da empresa. E não contribuem em nada para gerar a confiança e as habilidades necessárias nas equipes para que reflitam sobre seus pressupostos tácitos e questionem as falhas dos raciocínios que estão por trás de suas ações.
É esse o paradoxo da liderança de nosso tempo. As empresas têm de se tornar mais flexíveis e adaptáveis, o que requer forte liderança. Mas "chefes” poderosos podem impedir o florescimento de uma maior criatividade, a tomada de risco e a inovação necessárias.
Sistema Vivo
Uma forma de começar a dissolver esse dilema é entender que o que você está procurando mudar é algo vivo – embora normalmente enxerguemos nossas organizações como máquinas. Como Arie de Geus argumenta em seu livro A Empresa Viva (Editora Campus), a sociedade vê a corporação como uma máquina de fazer dinheiro. Ela tem donos. Em contraposição, um sistema humano e vivo teria proprietários? A corporação conta com projetistas e construtores, aqueles que criam os sistemas e os procedimentos formais. Um sistema vivo, ao contrário, constrói a si mesmo. A saúde da corporação é medida por quanto resultado (dinheiro) produz para seus donos, novamente um critério perfeitamente razoável para julgar uma máquina, mas não um sistema vivo. Finalmente, como uma máquina, a corporação não pode mudar a si própria – o que faz com que precise de líderes que possam dirigir a mudança. Mas se é impossível “dirigir” uma filha adolescente, o que nos faz crer que possamos “dirigir” mudanças na organização como um todo?
Se os CEOs acreditassem que as organizações são sistemas vivos, eles poderiam atuar mais como jardineiros do que como operadores de equipamento pesado. Jardineiros não mandam suas sementes crescer. Você imagina um jardineiro debruçando sobre suas mudas, gritando “Cresçam!”? Jardineiros entendem que as sementes têm potencial para crescer e que não foram eles que colocaram esse potencial nelas. Jardineiros também entendem que, em todos os processos de crescimento da natureza, o que está crescendo começa pequeno. E que, por algum tempo, a maior parte da mudança ocorre embaixo da terra, invisível aos olhos.
Poder Limitado
CEOs não são tão poderosos quanto todo mundo pensa que são – e eles sabem disso. “Qualquer um que pense que você pode dirigir esse tipo de mudança a partir do topo está errado”, diz Rich Teerlink, ex-CEO da Harley-Davidson. “Quando me tornei CEO pela primeira vez todo mundo pensava: 'Phil nos dirá o que fazer'”, diz o antigo CEO da Shell nos Estados Unidos, Phil Carroll, recém-apontado pelo governo americano para dirigir interinamente a empresa de petróleo do Iraque. "Mas eu não tinha a resposta, graças a Deus. Se tivesse, teria sido um desastre.”
Muitas pessoas que alcançam o topo de uma organização logo descobrem que têm pouco poder para controlar toda a sua complexidade. Essa realidade levou o principal executivo de uma empresa de energia internacional a definir a palavra “dirigir” – como em “dirigir” a mudança – como a mais inútil do vocabulário. “Você dirige um automóvel, mas não dirige um sistema humano", diz ele. "Se você tentar, pode acabar fazendo mais mal do que bem.”
Se você duvida do poder limitado dos CEOs, considere suas maneiras usuais de produzir mudanças. Eles articulam novas estratégias. Eles bolam novas campanhas de redução de custos. Compram e vendem empresas. E, a mais popular de todas, eles reestruturam suas organizações – freqüentemente mais de uma vez. Agem assim porque não há muito mais a fazer. Eles não projetam, não produzem nem entregam produtos ou serviços. Raramente vendem diretamente ao consumidor. E normalmente estão distantes demais para demonstrar a conexão entre as estratégias que concebem e o trabalho das pessoas na linha de frente.
Não há dúvida de que um CEO que se oponha a mudanças fundamentais pode tornar a vida dos inovadores internos muito difícil. Mas isso não prova de maneira nenhuma que CEOs, sozinhos, possam produzir inovações sustentáveis.
Ajuda ao Chefe
Se esses desafios não podem ser alcançados por líderes-heróis isolados, CEOs precisam de uma mistura singular de diferentes pessoas, em diferentes posições, e que exerçam liderança de formas diferentes. Nossa pesquisa dentro da rede global da Society for Organizational Learning (SoL) – Sociedade para Aprendizagem Organizacional, tem mostrado que pelo menos dois outros tipos de líderes são necessários para complementar o trabalho dos executivos em iniciar e sustentar processos de mudança: líderes de linha locais e networkers internos.
Temos visto vários exemplos de esforços de mudança significativos que duraram dez anos ou mais sem o apoio ou conhecimento do alto escalão. Curiosamente, não encontramos nenhum exemplo de esforços de mudança sustentáveis sem líderes de linha locais comprometidos. A razão pela qual líderes de linha locais (gerentes de filial, líderes de equipes de projeto, gerentes de venda, e outros gerentes na linha de frente) são tão essenciais é simples: toda inovação gerencial ou organizacional genuína se preocupa em melhorar os processos onde o valor é criado. Se uma empresa não aumenta sua capacidade de criar valor – seja através de maior eficiência ou eficácia nas atividades correntes, seja aprendendo como gerar fontes de valor totalmente novas – não há conseqüências para aqueles que a organização serve, seus clientes e consumidores. Líderes de linha locais são essenciais para a inovação porque trabalham perto de onde o valor é de fato criado, na “linha de frente” onde produtos são projetados, desenvolvidos, produzidos, e vendidos, onde serviços são gerados e relacionamentos com os clientes são construídos.
Mas as forças dos líderes de linha locais talentosos são também suas limitações. Eles estão freqüentemente tão focalizados em seu próprio negócio ou esfera de responsabilidade e na sua melhoria que ficam isolados de outros colegas com interesses similares. Essa é a razão pela qual networkers internos (trabalhadores da linha de frente, consultores internos, treinadores ou equipes de apoio), pessoas que espalham novas idéias e se movem livremente entre fronteiras funcionais, são também líderes importantes. Networkers internos servem de guias, conselheiros, ajudantes e assessores, conectando pessoas e idéias.
Papéis Singulares
Sem a iniciativa dos líderes de linha locais, nenhum esforço de mudança vai muito longe. Sem os networkers internos, práticas inovadoras raramente se espalham. Mas nenhum desses tipos de líder pode influenciar um clima organizacional geral que conduza à inovação tanto quanto um CEO. Isso começa com o estilo pessoal e o comprometimento dos executivos, que podem ser muito influentes como figuras simbólicas de uma cultura orientada para a aprendizagem. E inclui assumir responsabilidade pessoal para continuamente tratar as barreiras inevitáveis para a inovação existentes em todas as organizações que dificultam a vida dos líderes locais – como sistemas de medição e recompensa contraproducentes, níveis hierárquicos excessivos, e politicagem entre a alta gerência e diretores. Esse tipo de liderança é muito mais sutil, contextual e de longo prazo que o modelo tradicional do uso do poder que a liderança hierárquica sugere.
CEOs têm de prover liderança conceitual: para onde estamos tentando ir e por quê? (O porquê é tão importante quanto o onde.) De onde nós estamos partindo? Quais são a essência sobre nosso negócio, o mercado e as competências essenciais que nos tornam singulares? Tão importante quanto tudo isso é desenhar um processo de definição de estratégia baseado em valores que engaje líderes em diferentes níveis. Esses líderes devem continuamente refletir sobre questões como “quem nós somos e qual nossa contribuição no mundo?” Líderes não conseguirão criar culturas organizacionais mais abertas e adaptáveis se eles basicamente buscam poder e controle. A primeira questão deve ser sempre: "o que melhor servirá à saúde do todo na busca de nosso propósito comum?” Dessa forma líderes executivos podem contribuir significantemente com a qualidade do pensamento em toda a organização.
Em resumo, o problema não é a hierarquia em si, mas a hierarquia ineficaz. Como o pesquisador canadense Elliott Jaques sugere, líderes executivos têm uma responsabilidade singular ainda pouco compreendida. Em qualquer organização, diferentes pessoas precisam ter em mente diferentes horizontes de tempo. Pessoas na linha de frente, que lidam com clientes ou produzem bens, podem ter uma perspectiva que dure meses ou anos. Porém é mais freqüente que ela seja de semanas, dias, ou mesmo horas. A natureza do trabalho requer essa perspectiva de curto prazo. No outro extremo, os líderes mais seniores de uma organização deveriam olhar 20 anos para frente ou mais. Esse é o coração da responsabilidade do CEO.
Trabalho em Equipe
Desenvolver a capacidade para liderar dessa forma envolve um comprometimento para a vida toda. Mas a jornada começa com questões simples e primeiros passos. “O que quero que seja meu legado para esta comunidade?” "Que tipo de organização procuro construir?” “Estou disposto a mudar e ser o modelo que mostrará o caminho pelo exemplo?” “Estou disposto a descobrir como algumas das habilidades que me fizeram ter sucesso no passado podem inibir o novo tipo de organização que está tentando emergir?”
Uma das mais significativas demonstrações do comprometimento – gerando credibilidade – é a forma como os CEOs trabalham com suas equipes. Uma equipe saudável é aquela na qual uma pessoa de fora sairia de uma reunião pensando: “essas pessoas realmente sabem conversar sobre assuntos difíceis. Há muito respeito e muita vontade de desafiar as próprias idéias, de colocar os pontos difíceis sobre a mesa e dizer ‘isto aqui eu não entendo’”. Infelizmente, a capacidade de aprendizagem das equipes tende a deteriorar-se continuamente à medida que se sobe na escada corporativa. A equipe do topo é freqüentemente a mais disfuncional entre todas.
Por quê? A precondição para se construir uma equipe é que as pessoas se convençam que precisam uma das outras. Mas muitos executivos seniores não enxergam isso. Eles focalizam em suas próprias funções, suas próprias áreas, suas próprias agendas. Além disso, o fato de muitas das pessoas mais seniores ser aquelas que estão na organização há mais tempo, normalmente acarreta uma maior dificuldade em mudar. Essas pessoas foram selecionadas pelo – antigo – sistema como exemplares dos valores do passado. Em última instância, toda mudança organizacional séria é também uma mudança pessoal. Quando os executivos pensam que a mudança é para os outros e não para eles, desqualificam-se para servir como modelos que possam ajudar os outros a achar coragem de mudar. Esse é o motivo pelo qual algumas das escolhas mais cruciais na criação de um ambiente para a inovação envolvem remover pessoas em posições seniores que de fato não conseguem liderar a mudança – mesmo que elas ainda sejam produtivas na entrega dos resultados. Como disse recentemente um CEO de grande sucesso, “algumas vezes, tirar alguém que está bloqueando a mudança cultural de uma posição chave é mais importante do que contratar 100 novas pessoas.”
Nova Liderança
A definição de liderança expressa a seguir tem se provado muito útil em projetos de mudança ao longo dos anos: trata-se da capacidade de uma comunidade humana – pessoas vivendo e trabalhando juntas – de criar novas realidades. Liderar é, em sua essência, um fenômeno coletivo. Liderar é aproveitar a energia da criação – especialmente criar algo que realmente importa. Onde existe essa energia, somos mais engajados, plenos e produtivos. Somos mais vivos.
Quão radicais são essas idéias sobre a liderança executiva? Acreditamos que elas, em algum momento, levarão a uma mentalidade muito diferente e, em última instância, a um conjunto de habilidades muito diferentes entre executivos. “Gradualmente, passei a enxergar um modelo completamente diferente do meu papel tradicional como CEO”, diz Phil Carroll, ex-presidente da Shell. “Talvez meu verdadeiro trabalho seja o de ecologista da organização. Temos de aprender a enxergar a empresa como um sistema vivo, e vê-la como um sistema dentro do contexto de sistemas maiores dos quais faz parte. Só assim nossa visão incluirá com segurança o retorno aos acionistas, um ambiente produtivo para as pessoas e uma visão social para a empresa como um todo.”
Alcançar tais mudanças na forma de pensar, nos valores e no comportamento de executivos não é fácil. “A regra do jogo é abrir mão do poder”, diz Carroll. Entretanto, mesmo entre executivos “iluminados”, abrir mão do poder é difícil. “Não posso dizer que não sinta, algumas vezes, saudades do sistema antigo”, afirma Carroll. “Ser o comandante-em-chefe até que era divertido.”
